domingo, janeiro 01, 2006

Texto de Apoio I

O Trabalho de Investigação em Educação e Intervenção Comunitária

1. O que é uma monografia em Educação e Intervenção Comunitária?
Uma monografia é um trabalho escrito sobre um único e determinado ponto de qualquer temática. Quase todos os autores são unânimes em considerar a monografia como a descrição exaustiva e minuciosa de um determinado universo social (família, território, etc), considerado nos seus variados e articulados aspectos. Vários autores consideram-na o resultado do trabalho monográfico das ciências sociais, a partir de metodologias qualitativas, utilizada sobretudo no estudo exaustivo de comunidades, com o objectivo de apresentar análises completas e pormenorizadas (Eco, Silvestre e Salomon).
Este método aparece na 3ª década do século XIX e é popularizado mais tarde em 1855, como trabalho científico escrito, pela pena de Frederic Le Play, contemporâneo do pai do positivismo August Comte. Nessa data, Le Play publica 57 das cerca de 300 monografias que tinha realizado sobre famílias operárias, sob o título “Les Ouvriers européens”, onde descreve a vida e o orçamento de uma família padrão da classe operária da época.
O investigador brasileiro Salomon (1977) afirma que, desde sempre a monografia se caracterizou pela especificação, por tratar apenas de um só tema, e é por isso que ela se diferencia de uma enciclopédia ou de uma história como afirma Eco (1980).
O antropólogo português Nazareth vai mais longe, quando afirma que a monografia sobre uma comunidade, ao abordá-la sob todos os seus aspectos sociais tem “a finalidade prática de melhorar as condições de vida ou a inter-relação social…”
Uma monografia em educação e intervenção comunitária deve basear-se nesta finalidade metodológica, mas deve encarar ainda outros pressupostos fundamentais que aproximem teorias e métodos científicos, dos códigos, linguagens e representações emanadas das populações locais, muitas vezes conotados perjorativamente com a designação de senso-comum.
Hoje, conhecemos a visão de vários investigadores da ciência que contestam o primado da ciência e o cienticismo absoluto. Por exemplo Popper (1992:47), afirma que “o saber no sentido clássico, o saber certo, a certeza, não é possível”. Dessa forma, a busca de articulação entre vários saberes, científicos ou experienciais, o respeito por diferentes culturas, académicas ou populares, é fundamental para o desenvolvimento de qualquer trabalho científico, que vise um processo de protagonismo social do objecto de estudo que, por essa via, passa também a ser o sujeito de investigação para a mudança. Como diz Melo (1988), numa relação não só de face a face, mas sim de ombro a ombro.
Esta ideia é reforçada por Nunes (1994:34-35), que refere a ciência como sendo “uma outra maneira de ler o real, diferente da do senso-comum”. Assim podemos considerar que após as várias “rupturas epistemológicas”, caminhamos para uma aproximação entre a ciência e o senso-comum, “uma relação em que qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo” (Santos, 1993:43). Aliás, toda esta tese é confirmada pelo excelente conteúdo científico dum livro recente e belo, escrito por imparciais investigadores, com o título “A mais bela história do mundo” (Reeves, Rosnay, Coppens e Simonnet).
Pelo que atrás se disse, podemos inferir da necessidade de basearmos o trabalho monográfico em educação e intervenção comunitária, num jogo de parceria entre os saberes do investigador e os conhecimentos das populações locais, muitas vezes representados em organizações associativas e outras instituições locais. A monografia deve traduzir o conhecimento da realidade social e a detecção de necessidades objectivas locais, a partir de definições comuns. O que se visa é o aprofundamento da conscientização dessas necessidades, para que estas sejam valorizadas como direito social, como refere Diéguez (1999). É a isto que a monografia deve saber dar respostas, pela proposição de planos e projectos. A sua finalidade é visar a qualidade de vida da comunidade, pelo veículo do seu protagonismo histórico, num processo que se deseja de valorização da população, pela via da sua organização social, no fundo um processo de educação comunitária em que todos aprendem.
A Monografia em educação comunitária não pode limitar-se a apresentar um conjunto de dados sobre a realidade comunitária, estabelecendo respostas para teóricas hipóteses, como fazem a sociologia ou a antropologia, mas deve apresentar soluções concretas, partilhadas pelo investigador em envolvência com a comunidade, com vista ao seu desenvolvimento educativo, social e cultural.
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2. Como se identifica e delimita o tema da Monografia?
Qualquer projecto de investigação que vise a apresentação de cariz monográfico, deve iniciar-se com a formulação de uma pergunta de partida, a partir da qual se coloquem problemas parcelares, hipóteses de trabalho, metodologias e instrumentos e técnicas de análise, subsequentes. O investigador precisa claramente o seu objecto de investigação, de forma a procurar obter as melhores respostas. Por isso a pergunta de partida deve ser, de acordo com Quivy (1999) clara, exequível e pertinente. Para que isso seja possível, o tema deve ser circunscrito a um problema específico do contexto social e territorial. Segundo Eco (1980:23) “quanto mais se restringe o campo melhor se trabalha e com maior segurança”.
O problema/tema a identificar e delimitar deve ser de carácter social e possibilitar um trabalho de intervenção sobre o mesmo, de forma a criar mudança social, estimulada pelo educador e interventor comunitário. Ao problema principal podem ser associados, de forma transversal, outros problemas comunitários, de forma que as acções possam ser integradas, globais e articuladas. Os problemas podem ser resolvidos localmente, mas devem ser pensados globalmente, a toda a largura da sociedade (Melo, 1996).
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3. Que podemos dizer sobre diagnóstico de necessidades?
Sem necessidades, não há estímulos para a satisfação de necessidades. Portanto, sem elas, não há projecto de intervenção comunitária. Praticamente todos os modelos, conhecidos, de intervenção apontam como primeira tarefa (pergunta de partida ou hipótese de trabalho) a detecção, averiguação ou conhecimento das realidades sociais e dos seus problemas. Sem estes, não há propostas de trabalho ou a investigação resume-se então a um mero exercício de estilo teórico e académico.
É decisiva a atitude metodológica que origina o conhecimento da realidade e a identificação de necessidades. Este trabalho pode ser feito exclusivamente pelo investigador, que supõe determinadas necessidades à luz dos seus padrões de cultura, ou por ele em conjunto com os conhecimentos, desejos e representações sociais das populações. Mas vejamos, antes, o desenvolvimento da problemática das necessidades, enquanto vertente psicológica.
São conhecidos os estudos sobre a pirâmide das necessidades de Abraham Maslow. Este psicólogo americano, fundador da teoria humanista - com, entre outros, Carl Rogers - no seu principal livro “Introdução à psicologia do ser”, avançava uma sequência de níveis piramidais em que as necessidades se apresentavam numa hierarquia de importância e influência. Nos dois primeiros degraus se encontravam as necessidades primárias, compostas por necessidades fisiológicas e necessidades de segurança, e nos degraus seguintes as necessidades de amor e pertinência - portanto necessidades sociais - as necessidades de estima e finalmente as necessidades de auto-realização. Esta última, é considerada a chave do trabalho sobre o desenvolvimento do ser. Assim, só quando um nível de necessidades está satisfeito, ou adequadamente atendido, pode surgir o nível imediato no comportamento, o que nem sempre acontece, originando frustações e regressos aos níveis inferiores. Sabemos que nem toda a gente consegue chegar ao topo da pirâmide e que alguns só se preocupam, por determinadas razões, com os níveis primários. É por esta razão que, como dizem Sprinthall e Sprinthall (1993:508), “temos de estar atentos para algumas pessoas nem sequer considerarem algumas necessidades sociais, porque ainda não satisfizeram as suas necessidades básicas”. O educador comunitário deve considerar, no seu trabalho, esta real premissa, conjugada com o facto de saber que o défice (que representa a necessidade no indivíduo) pode permitir a activação do impulso com vista à aproximação da meta ou satisfação da necessidade (Sprinthall e Sprinthall, 1993).
Considerando que a insatisfação de necessidades origina queixas e metaqueixas, Maslow sugere que “uma boa medida do grau de esclarecimento de uma comunidade é o nível das queixas dos seus membros”. O que nos faz preocupar quando não existem metaqueixas, porque sabemos não existir satisfação de necessidades primárias.
O investigador Colin Clark, citado por Diéguez (1999) apresenta, também, uma lista de necessidades, subdividindo-as em Primárias (alimentação, saúde e habitação), Secundárias (conforto, bem estar e lazer) e Terciárias (cultura e espirituais). Trata-se de um modelo mais social do que psicológico, a partir do qual se podem inferir problemas na tipificação dessas necessidades, porque sabemos a diferença entre as necessidades que podem ser induzidas pelo investigador e aquelas que são as reais necessidades das populações. Mas, mesmo aqui, como se definem “reais” necessidades? A investigadora Sirvent (1984:38), tenta esclarecer esta questão afirmando existir uma “décalage” entre “a existência de necessidades reais e o reconhecimento das mesmas por parte da população (pois) à medida que aumenta o grau de carência social e económica, diminui o reconhecimento das necessidades reais de um grupo social”. Para esclarecer esta proposição estabelece diferenças entre necessidades subjectivas e necessidades objectivas. As primeiras seriam assim, estados de carência percebidos como tal, sendo que as segundas seriam estados de carência que podem ser determinados, independentemente da consciência individual.
Para a identificação e priorização das necessidades, o investigador deve tomar como paradigma, ainda segundo a mesma autora, a satisfação das necessidades humanas e sociais, que conjugam o conceito de qualidade de vida. Os impulsos da intervenção comunitária devem visar, assim, satisfazer tanto as necessidades básicas, como as que a autora chama de necessidades não materiais. Até porque, como refere a UNESCO (1977), “o conjunto das necessidades de um ser humano constitui um sistema…”.
É sobretudo no plano das necessidades objectivas, em especial no nível terciário (não material ou de auto-realização), que se podem desenvolver positivamente os impactos dos projectos comunitários, permitindo à população “ser protagonista de sua própria história” (Sirvent, 1984:40).
Outros autores apontam a utilização de padrões ideais ou médios para definir necessidades objectivas, ao confrontá-los com as necessidades apresentadas pelas populações locais. São padrões normativos que podem ser testados a partir de várias técnicas e que pretendem elevar o estado de consciência das necessidades sentidas, a um nível superior de necessidades exigidas. É este o processo de conscientização social que pode levar à mudança social na comunidade, como refere Paulo Freire (1989).
O segredo está em desenvolver as acções de auto-diagnóstico das necessidades, educativas ou outras, a partir de uma pluralidade de actores sociais, envolvendo o(s) autor(es) da monografia, junto com a população e as instituições, com o objectivo de gerar acordos entre todos. Nesta situação não se privilegia o habitual poder de decisão sobre as necessidades, da parte do professor, do investigador, do perito ou de outro qualquer elemento externo.
A tarefa fundamental do educador comunitário será a de funcionar como mediador entre população e entidades locais e regionais, de concertador de conflitos locais entre grupos sociais da comunidade, de supervisor do cumprimento das deliberações comunitárias. O que nos interessa é o todo comunitário e não a solução do problema individual, familiar ou grupal, como tem sido apanágio das políticas assistencialistas do Estado.
Para questionar necessidades subjectivas, podem-se colocar as seguintes interrogações: Que necessidades tem? / Que direitos tem? (evidencia necessidades implícitas).
Para questionar necessidades objectivas podem utilizar-se várias técnicas, de onde sobressaem: informantes privilegiados; observação directa; análise de documentação; indicadores estatísticos; fóruns de comunidade; grupos nominais (eleitos/representantes). Uma das formas pode passar pelos seguintes passos:
a) Lista de perguntas para detectar necessidades;
b) Perguntar quais são os três principais problemas da comunidade, por ordem de importância;
c) Perguntar quais as soluções para esses problemas;
d) Perguntar quem consulta quando tem problemas (para descobrir lideranças).
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4. Como motivar a participação das populações locais?
A participação das populações locais, nos processos de decisão dos projectos de trabalho comunitário, é decisiva para a sua eficácia e eficiência, e é a garantia de que essas acções são verdadeiros processos educacionais, visando o desenvolvimento global das comunidades.
Sabemos que o envolvimento da população local não é uniforme. As comunidades caracterizam-se pela existências de diversos grupos sociais e culturais, minados por conflitos internos de poder, mas também por consensualidades contra o exterior, quase sempre dirigidos por líderes formais ou informais, permanentes ou transitórios. Tendo isto presente, consideremos níveis de participação diferentes, a partir de formas compromissórias diversas, tendo como vértice as lideranças locais, e alargando-se o leque, por arrastamento, a um número sempre superior de participantes. Tomemos em consideração também a existência, nos círculos mais afastados do núcleo central (também designado por núcleo duro, onde estão os líderes locais), de elementos sem compromisso de participação que podem ser ou tornar-se obstáculos ao desenvolvimento dos projectos.
Os modelos de participação devem ser, assim, pautados pelo cruzamento de protagonismo entre a variável “investigador/interventor” e a variável “população”. Grande parte dos modelos teóricos das ciências sociais e a grande maioria das experiências de intervenção prática, realizadas pelas instituições, apostam no poder do sujeito da investigação. Esses são os modelos de imposição, em que as decisões fundamentais são tomadas pelos investigadores: o como, o quando, o onde e o porquê da acção. À população resta a resolução das variáveis práticas: o quem, o com quê.
Nos modelos intermédios (de troca), à população pode ser reservado maior papel, nalgumas decisões estratégicas de fazer o quê, onde, quando e para quê.
O modelo auto-gestionário aposta numa inversão total desta metodologia, pois deixa à população a determinação das variáveis fundamentais, restando aqui ao educador comunitário, o papel de participar no com o quê, - recursos a utilizar.
Diversas técnicas se devem conjugar e articular no sentido da mobilização das pessoas, nas comunidades, tendo como base teorias da motivação psicológica, desenvolvidas por Thorndike e Jerome Bruner, para além do já referido Maslow. Outras técnicas deverão ser utilizadas na mobilização das populações, de forma a descobrir, e mais tarde capacitar, líderes locais. Quase todas estas técnicas, são oriundas da metodologia qualitativa: fóruns, debates, entrevistas abertas, teatro popular, reuniões associativas. Por estas vias a população participa, desde logo, nas concepções metodológicas, imprime a dinâmica do modelo de intervenção e aproveita o processo de desenvolvimento como valorização educacional.
Nenhum actor social deve trabalhar sózinho, e é por isso que são determinantes as parcerias com as entidades e grupos locais: associações, grupos de jovens, administração local, patriarcas, informantes privilegiados e líderes informais da comunidade. Ao educador comunitário devem caber as funções de agente de desenvolvimento, desta pluralidade activa: animação, informação, mediação - entre a comunidade e os órgãos de poder-, negociação e concertação - entre os conflitos locais.
Neste processo de educação, mais importante que o produto da transformação social, a população funciona como sujeito da sua própria organização social e do seu próprio processo de desenvolvimento pessoal e colectivo.